Canela,

20 de abril de 2024

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A nossa violência silenciosa de cada dia: números de Canela assustam

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Ana, 14 anos, moradora de um bairro longe do centro de Canela, vive com a mãe e quatro irmãs. A mãe, Maria, nunca lhe disse quem era seu pai, e a única figura paterna que teve contato foi o pai de suas irmãs, Carlos, que não vive mais com a família.

Uma noite, enquanto a mãe trabalhava fazendo extras num restaurante, o padrasto convidou Ana para assistir televisão com ele no sofá, enquanto as meninas mais novas dormiam. A adolescente ficou muito feliz, porque Carlos não costumava dar demonstrações de carinho para ela, só com as filhas.

Deitando os dois no sofá, Carlos fez “carinhos” em todo o corpo da enteada, dizendo que ela era muito bonita para sua idade; disse que ela era especial. Ana achou estranho e se afastou, indo para seu quarto. Mas, nos outros dias de trabalho noturno de Maria, o padrasto convidou Ana outras vezes para assistir filmes, que ela adorava, e ficarem próximos. Carlos também prometeu um celular para Ana, se eles pudessem assistir filmes sozinhos toda a semana.

Um dia, na escola onde estuda no 3º ano, Ana contou para sua professora o que vinha acontecendo com Carlos. A professora deu-se conta que tal história é muito comum em casos de abuso sexual dentro das famílias e chamou o conselho tutelar. Para o conselheiro, Ana confirmou os “carinhos estranhos” do padrasto durante os filmes que assistiam. A adolescente, sua mãe e irmãs foram encaminhadas para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS para acompanhamento psicológico e social.

Nos atendimentos, as irmãs de Ana contaram que viram o pai assistindo vídeos pornográficos no celular e que ele as chamou para ver junto, dizendo que era pra elas “aprenderem como era a vida”.

A história de Ana é apenas uma história, criada a partir de vários fragmentos que casos atendidos pelo CREAS em Canela. Assim como essa personagem, muitas crianças e adolescentes sofrem violências dentro de suas casas, vindas de pessoas que deveriam cuidar e proteger elas.

Neste minuto, oito mulheres podem estar sendo agredidas fisicamente no país. O número é mais do que uma estimativa: é resultado da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, realizada pelo Datafolha, que entrevistou mulheres de todo o país.

No que diz respeito à crianças e adolescentes, não é diferente, 85% dos casos registrados dizem respeito à abuso sexual e acontecem dentro de casa, vindo de uma pessoa que deveria proteger.

Pode parecer distante, mas em Canela, os números assustam e mostram que esta realidade está mais perto de você do que poderia imaginar. Os dados mais recentes do Centro de Referência Especializado em Assistência Social, o CREAS, mostram que somente no mês de julho foram atendidas 12 vítimas de violência em Canela, entre eles foram 7 crianças ou adolescentes vítimas de negligência, 2 mulheres em situação de violência doméstica, uma negligência com idoso, um abuso sexual com criança de zero a 6 anos e um abuso sexual com criança de 7 a 12 anos. Em junho, foram 21 novos casos e atualmente o CREAS acompanha cerca de 100 casos.

A vergonha e/ou a dependência, seja psicológica ou financeira, ainda fazem com que muitas pessoas sigam em situação de violência e não procurem ajuda. Receosas ou com medo da reação dos agressores, as vítimas evitam compartilhar angústias ou solicitar ajuda, o que nos diz que o número pode ser bem maior, já que esta é uma violência silenciosa.

Um mal que atinge todas as classes

Claro que o número é bem maior em famílias de pior situação financeira, uma vez que a vulnerabilidade social é a porta de entrada para a maioria destes males, mas a violência doméstica atinge todas as classes. Recentemente, o vereador Jerônimo Terra Rolim denunciou nas redes sociais o caso de uma mulher que ofereceu bebida alcoólica e cigarros para crianças em um clube de classe alta da cidade. Rosangela Mello dos Santos, coordenadora do CREAS em Canela, explica que o órgão já atendeu neste ano dois casos encaminhados por escolas particulares. A violência, para ela, vem em ciclos. A família é atendida pela rede de proteção, recebe o acolhimento e é tratada. Acaba melhorando. Tempos depois acontece um desequilíbrio e a violência ou a negligência volta a acontecer.

Mônica Boeira, psicóloga do CREAS, explica que o trabalho no órgão não é encontrar culpados, isso fica para a Justiça, o objetivo maior é o atendimento e a ajuda à família ou às vítimas.

A rede funciona?

Nesta primeira reportagem da série “A violência nossa de cada dia” já surge uma dúvida que deve ficar esclarecida até o final das sete matérias previstas: afinal a rede de proteção aos vulneráveis em Canela existe fora do papel? Se existe, ela funciona?

Em um primeiro momento, a resposta parece ser não. Isso porque essa violência doméstica fica ainda mais silenciosa quando percebemos que não existe uma rede de dados confiáveis sobre o assunto. Os números sobre violência contra criança, adolescentes, mulheres e idosos que constam nos diferentes órgãos que atendem a este tipo de ocorrência não retratam fielmente a situação do Município, uma vez que ainda não foi implementado um sistema de informação que organiza e cruza dados de atendimentos. “Os casos vem de todos os lados, desde o Conselho Tutelar, passando pelo CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, Escolas, Delegacia, Hospital, disque denúncia e até mesmo procuras espontâneas”, explica Mônica.

56 medidas protetivas em vigor na cidade

Desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, tem crescido, no país, o número de medidas protetivas de urgência às vítimas de violência doméstica. Mas muitas mulheres ainda não têm noção da importância dessa proteção. Difícil enxergar quando é hora de dar um basta na violência doméstica. Em Canela, atualmente, são 56 medidas protetivas em vigor. Para o Delegado Vladimir Medeiros, responsável pela DP de Canela, não é um número expressivo em comparação ao número de casos de violência contra a mulher na cidade.

Crime sem castigo

Um dos casos atendidos no CREAS é de uma menina de oito anos de idade. Ela sofria abuso do padastro, o caso foi encaminhado à Polícia e a menina levada à Porto Alegre para uma perícia oficial que só acontece na Capital. Outros laudos e perícias que não são deste órgão oficial do Estado, em geral, não são aceitos pela Justiça. O processo demorou e a menina acabou sendo atendida no CREAS por fatos acontecidos na escola. Ela começou a demonstrar comportamento inadequado para a idade e a cometer pequenos furtos, o que levou a escola fazer o encaminhamento. O CREAS identificou se tratar da mesma criança vítima de abuso e no decorrer do atendimento verificou que o comportamento da menina tinha relação direta com os abusos que havia sofrido. A criança segue sendo atendida pela equipe, mas o homem que cometeu o abuso está solto, nem mesmo respondeu processo ainda.

Este não é um caso isolado. Um questionamento feito pelas profissionais do CREAS é este: porque os abusadores não são presos em Canela? “A gente sabe de familiares que cometeram abusos e estão soltos. Por que?”. Finaliza a psicóloga.

Histórico familiar e social

Em geral, a violência familiar e o abuso sexual é apenas a continuidade de um histórico familiar. O abusado vira abusador, quem foi vítima de violência, tende a praticar a violência. A forma como a sociedade trata essas pessoas também acaba influenciando nestes conflitos. A não aceitação na sociedade, na escola, no emprego, acaba gerando violência. Vejamos o histórico de uma menina de 18 anos. Ela chegou até o CREAS no atendimento de sua companheira e enteada. No acompanhamento, as profissionais identificaram um sério problema de gênero e ainda traumas na adolescência que incluíam a venda de uma filha. Após disso, a menina acabou se envolvendo com o consumo e com o tráfico de drogas. A história não acabou bem. Ela acabou por tirar a própria vida há algum tempo.

Não fique calado

Se você sabe de algum caso de violência contra mulher, criança, adolescente ou idoso, não fique calado. Ligue para o Disque Direitos Humanos, o Disque 100. A central funciona 24 horas por dia, durante todos os dias da semana, inclusive feriados. Basta ligar, de qualquer cidade, para o número 100, para denunciar violações aos direitos de crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiências físicas e de grupos em situação de vulnerabilidade, ou ainda para obter informações. A pessoa não precisa se identificar.

Outro caminho é procurar diretamente a Delegacia de Polícia de Canela, ou o CREAS. Se a violência doméstica é silenciosa, cabe a todos nós quebrarmos este ciclo e começar a falar.

Oficinas para os grupos no CREAS

Atualmente o CREAS realiza trabalhos com dois grupos distintos. Um deles para mulheres e outro para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, dentro dos casos de risco e vulnerabilidade que atendem. Além dos atendimentos psicossociais individuais e familiares, o CREAS oferece à comunidade grupos, nos quais os participantes podem trocar ideias e vivências com as profissionais do serviço. Com frequência quinzenal, há o Grupo de Mulheres, para conversar sobre as alegrias e dificuldades dos relacionamentos de casal e de ser mulher na nossa sociedade.

O próximo encontro será dia 21, às 14h. Também com frequência quinzenal, está prestes a iniciar dia 28, às 14h, o Grupo de Famílias, onde pais, mães e responsáveis por crianças e adolescentes poderão discutir como auxiliar seus filhos a ter um melhor desenvolvimento, sem o uso de violências de qualquer tipo. Para participar desses grupos, a pessoa pode ser encaminhada de algum serviço da rede de atendimento (Postos de Saúde, Conselho Tutelar, Escolas, Hospital, Delegacia, CRAS, entre outros), ou pode vir espontaneamente ao CREAS, no dia e horário marcados.