Canela,

17 de abril de 2024

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Tempos medonhos

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Hoje resolvi fiscalizar meu armário de roupas. Para quê, pergunto a mim mesma? Está tudo arrumado. Nos últimos meses, experimentei diferentes tipos de organização. Ele ficou mais do que arrumado, tornou-se, como nunca foi, o armário mais arrumado do mundo.

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Talvez uma nova ordenação: roupas de pouco uso, como aquelas de casamentos, aniversários e formaturas chatas irão para o fundo, aquelas muito usadas, já com sinais de desgaste irão direto para a sacola de descarte. E a minha preferida? Lá está ela, morrendo de saudades! Olha para mim e eu para ela. Decido vesti-la. Está apertada, talvez eu tenha exagerado nos doces nesses meses de isolamento. Não, ainda serve. Como ela fica bem em mim! Tão colorida, alegre e ainda não saiu de moda.

Sinto que está faltando uma coisa. Ah, já sei, preciso dar uma trato nos cabelos e por fim um toque suave de maquilagem. E os brincos não devem ser esquecidos. Pronto. Não, ainda falta algo. Calço os sapatos de salto, aqueles abandonados na sapateira. O espelho aprova.

Começo a caminhar pela casa – uma volta, duas voltas, muitas voltas… Só o ruído dos saltos no piso quebram o silêncio. Toc, toc, toc. Um soar ritmado como meu andar. Pareço escutar a campainha. Nada. Afasto a cortina, abro um pouquinho a janela e espreito. Ninguém. Ninguém virá. E eu aqui, toda arrumada à espera.

O tempo não passa, só o relógio implacável no seu tic-tac continua a marcar as horas. Para que servem? Tudo continua igual. A madrugada sorrateira se aproxima. Os minutos passam ainda mais devagar.

Lentamente começo o desvestir, uma peça de cada vez. Espere, uma peça está com pontinhos úmidos. Bobagem, roupas não choram, como diria o poeta. Seriam as gotículas de Flügge? Afinal espirrei três vezes à janela. O meu velho tio coronel diria que essas gotículas são perigosas, principalmente nestes tempos medonhos.

Mesmo assim, as roupas, depois de sentirem o perfume de meu corpo cansado da insônia, voltarão para sua clausura e seguirão envelhecendo … tal como a dona.

Circe Mary Silva da Silva Dynnikov

Moradora de Canela, professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo e atualmente atuando como professora voluntária na Universidade Federal de Pelotas.
cmdynnikov@gmail.com