Canela,

12 de maio de 2024

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João Maria Noronha de Brito – 103 anos eternos

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Por meio de suas redes sociais, a própria Prefeitura de Canela, na Serra Gaúcha, relatou que, no sábado, o município de Canela perdera “seu morador mais ilustre”, João Maria Noronha de Brito, de 103 anos. Em pouco tempo, a publicação viralizou, contabilizando centenas de curtidas, dezenas de comentários e inúmeros compartilhamentos. Houve uma verdadeira comoção, agregando moradores da cidade anfitriã e também de outros municípios e estados, além de pessoas de diferentes faixas-etárias, antagonistas políticos, torcedores de diferentes camisas, integrantes de diversas classes sociais, níveis de instrução, cor e credo.

PROTAGONISMO

Quando nos referimos a comoção, logo pensamos em abalo e emoção, porém no caso do senhor João Maria, que “viveu” e não apenas “sobreviveu” 103 anos e cinco meses é plausível fazer uma merecida concessão, afirmando que, durante sua partida, o sentimento de “gratidão” predominou. Ele subiu aos céus, mas continua vivo no coração, na memória e no legado constituído por bondade, humildade, partilha e fé! Quisera o destino, que João Maria partisse para o além na véspera do Natal, momento tradicionalmente dedicado à reflexão, adoção de ajustes e renovação da fé.

E “seu” João Maria representa uma bela fonte de inspiração. Não por acaso, emprestou seu nome e capítulos peculiares de sua trajetória para o livro “Os Canelistas”, escrito pelo advogado e jornalista Márcio Cavalli, onde destaca protagonistas na história e desenvolvimento do município. Também foi homenageado com o Título de Cidadão Canelense, proposta feita pelo vereador Alberi Galvani Dias e aprovada por unanimidade.

Enfim, tentar descrever João Maria Noronha de Brito seria literalmente “chover no molhado”. Seu exemplo de vida é raro e tão inspirador, que mesmo durante o ato funeral, várias pessoas fizeram testemunhos espontâneos.

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ANJO DA GUARDA

Cristiane Stopassola da Silva, por exemplo, recorda que, ele foi indicado pelos colegas de sala de aula para receber uma homenagem de honra ao mérito durante a formatura da primeira turma de supletivo da Escola Estadual Adolfo Seibt: “Estudávamos à noite. Seu João era nosso verdadeiro anjo da guarda, garantindo segurança, orientando e incentivando a todos. Dias antes da formatura, ele fora vítima de um infarto do miocárdio, mas mesmo assim fez questão de comparecer a solenidade, emocionando os presentes.”

CORAÇÃO GIGANTE

Uma das filhas dele e da primeira esposa, Isaltina Albino de Abreu, Dona Dina, Maria Margarete de Brito, conta que o pai era disciplinador, mas tinha um coração do tamanho do mundo. “Em nosso lar, eles acolheram mais de duas dezenas de crianças, várias delas ainda bebês, a maioria carentes, muitas com problemas de saúde e diversas renegadas. Alegria do pai e da mamãe era ver a família reunida. Éramos humildes, mas havia união, superação e amor fraterno”, comenta.

Margarete também lembra um episódio especial, quando sofreu um acidente doméstico: “Tinha 11 anos. O assoalho de madeira estava encerado e, em um descuido acabei resvalando, o que resultou na fratura do fêmur. O tratamento e a intervenção implicaram em inúmeras incursões aos médicos e viagens para Porto Alegre. Enquanto a mãe me acompanhava nestas viagens, o pai trabalhava para viablizar exames, assistência e cirurgia. Quando o assunto era família, ele não pensava duas vezes em comercializar cabeças de gado, porcos, galinhas, caso houvesse necessidade.”

GUERREIRO

Entre os anos 50 e 60, enquanto trabalhava em uma olaria no Bairro Santa Marta, João Maria foi atingido por uma pilha de tijolos que caiu sobre seu corpo. Ele sofreu escoriações corporais e algumas perfurações, ficando aproximadamente quatro anos acamado. “Mesmo debilitado, o pai jamais desanimou. Além de seguir rigoroso tratamento e reforçar sua devoção em Deus, ele vendia um gado por mês para garantir o pagamento das despesas, manutenção do lar, medicamentos e médicos. Sua persistência foi tamanha, que conseguiu reabilitar-se, retomando a rotina gradativamente,” revela Margarete.

EDUCANDO PARA A VIDA

 O vizinho Mário Fontoura guarda boas recordações dele. “Seu João contagiava a todos, especialmente nós crianças e jovens. Além de ser uma pessoa correta e bondosa de coração, gostava da natureza, apreciava a vida saudável, não bebia, não fumava e nos incentivava a praticar atividade física. Frequentemente organizava “excursões”, onde a garotada o seguia a locais como Morro Calçado, Morro Pelado e Barragem do Salto. Para ele, pedalar rumo ao interior do município ou cidades vizinhas era comum. Fazia isto sempre esbanjando alegria e repassando ensinamentos.”

MESA GRANDE

Adair Gross, por sua vez, destaca que, na mesa da casa de “seu” João Maria e “dona” Dina sempre havia espaço para compartilhar alimentação e bons costumes. “A família deles era a maior do bairro Santa Marta, então as crianças brincavam e faziam amizade com seus filhos do coração. Lembro que na hora do café, almoço ou jantar nos sentíamos como se estivéssemos em casa. A alimentação era simples, saborosa, além de predominar carinho e respeito. Éramos recebidos de braços abertos, participando de uma verdadeira ceia coletiva, algo inimaginável para os dias atuais”, pondera.

DIVULGANDO CANELA

Vlademir Jardim não esconde a emoção ao rememorar que, quanto tinha 9 anos de idade ajudava João Maria a levar os cavalos do Bairro Santa Marta até a cocheira improvisada, que ficava situada próximo ao Palácio das Hortênsias, entre árvores estrondosas e de sombra agradável: “Ali ele locava os animais para passeio, especialmente aos fins de semana. Os turistas e visitantes recebiam informações sobre características da cidade, estabelecimentos para alimentação ou hospedagem, pontos turísticos e trajetos”, conta.

Vlademir também afirma que, na hora da refeição, “seu João” compartilhava café e alimentos como cuscuz e paçoca de pinhão – caprichosamente preparados pela “dona” Dina – com visitantes e amigos.

MARROEIRO, SIM SENHOR!

O sobrinho Léo Brito, que reside em Caxias do Sul e hoje atua como corretor de imóveis destaca que só tem boas recordações de João Maria. Era uma verdadeira enciclopédia viva! Gostava de ouvir suas lembranças sobre São Jorge da Mulada, uma vila que pertence à Criúva, tradicional comunidade da zona rural caxiense, onde ele nasceu e cresceu e também terra onde se encontra a Fazenda histórica da família Bertussi, pioneiros na música tradicionalista gaúcha.

“Lembro de vários causos. Em especial dos relatos sobre o ofício de trabalhar como marroeiro (cortador de rochas). Ele iniciou como ajudante, segurando talhadeiras; depois passou a desempenhar a função de talhador. Contava que aquele que batia com a marreta desprendia maior força e energia, por isso recebia salário dobrado. Com base nesta realidade, teve que adaptar-se, pois desejava ampliar o rendimento mensal, garantindo assim melhor qualidade de vida para sua família. Seu João treinava para aperfeiçoar-se depois do expediente”, narra.

Segundo o interlocutor, quando entendeu que estava preparado para segurar a marreta e, ao mesmo tempo talhar as pedras, João Maria comunicou isto ao chefe. “Ele dizia que, no princípio, o patrão e seus colegas ficaram incrédulos com a proposta. Em forma de desafio, lhe propuseram um teste. Seu João não apenas fez a prova, como surpreendeu a todos, rachando rochas grandes e resistentes. Assim, além de obter a duplicação salarial, conquistou maior respeito e admiração profissional.”

CANELA NO PEITO E NO CORAÇÃO

Uma das histórias preferidas por João Maria estava associada a sua participação, como operário, em várias obras fundamentais para o crescimento e desenvolvimento de Canela/RS. Ele sentia satisfação em contar que trabalhou na construção da Usina Hidrelétrica Bugres. Em operação desde 1952, a usina utiliza o potencial hidráulico dos rios Santa Maria e Santa Cruz, com regularização nas barragens do Salto, Blang e Divisa. A transposição do vale ocorre por meio de um túnel com 2.080 metros de comprimento e 2,2 metros de diâmetro.

Na época, o projeto foi tão grandioso que recebeu tecnologia internacional. A turbina, por exemplo, foi fabricada pelas empresas Neyret-Beylier e Piccard-Pictet (NEYRPIC), da França.  A usina é telecomandada na sede do Sistema Salto, que fica junto a UHE Canastra, no município de Canela. De lá, também são telecomandadas as demais usinas que constituem o Sistema Salto.

FÉ INABALÁVEL

Outro testemunho emocionante é feito por Fernando Rocha Peluffo, da Igreja Mundial do Poder de Deus: “Em 1998 conheci seu João durante um Núcleo de Oração no Bairro Santa Marta. Desde então fizemos o compromisso de levá-lo, às sextas-feiras e domingos, à igreja, situada na Avenida Getúlio Vargas, no Centro. Ele foi batizado e viveu pela fé. Hoje (sábado) completou a carreira e partiu para a glória, com 103 anos bem vividos. Fica a saudade, mas a alegria de saber que está junto com nosso Senhor Jesus. Glória a Deus!”

Fernando observa que, vez por outra, João Maria abdicava de receber carona. “Quando isso ocorria, ele colocava uma flor ou um raminho na janela da minha casa. Esta era a senha para que soubéssemos (eu a minha esposa Aurea) que ele havia se deslocado caminhando do Bairro Santa Marta até o templo da igreja.”

Já o Pastor Rodrigo, também da Igreja Mundial do Poder de Deus, no Centro de Canela/RS, destacou, durante a celebração do culto fúnebre, que a trajetória de João Maria está sintetizada na Bíblia, no livro de Mateus (24-13), onde consta a seguinte mensagem “Mas quem perseverar até o fim, esse será salvo”.

O religioso salientou que, a fé, abnegação e humildade de seu João servem de inspiração, porque mesmo com mais de 100 anos e enfrentando alguns obstáculos, ele sempre demonstrava disposição e crença em Deus: “Muitas vezes constatava que, seu João optava por ir caminhando até a sede da Igreja Mundial, no Centro. Não tenho dúvidas de que, ele fazia isto devido a sua sabedoria e harmonia com Deus, pois durante este deslocamento, orava em silêncio e desfrutava das belezas naturais. Mesmo sendo o mais idoso entre os presentes, era o primeiro a chegar no culto. Ele aguardava o início da celebração em silêncio e orando.”

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GRATIDÃO, SEU JOÃO MARIA

E o jornalista João Carlos Silva, que conheceu João Maria em 2000, hoje residente em Araranguá/SC, mas na época também morador de Canela/RS enfatiza que, ele contagiava pela personalidade, sabedoria e humildade: “Sempre que lhe visitava aproveitava para ouvir suas histórias e ensinamentos. Com ele aprendi lições que levarei para a eternidade! Sinto-me privilegiado pela ímpar oportunidade de literalmente beber um pouco desta sabedoria.”

Também recorda que, no domingo, dia 29 de novembro de 2020 – acompanhado da família – convidou seu João para fazer um passeio até o Parque Laje de Pedra: “Ele aproveitou cada momento. Seus olhos brilhavam ao passar pela portaria. Seu João revelou que, ao acompanhar o início daquele projeto, não imaginava tamanha evolução estrutural.”

No passeio, João Maria não conteve emoção ao ver peixes na piscina, uma lebre e lagartos circulando em plena via pública. “O momento mais marcante, entretanto, ocorreu quando teve oportunidade de chegar ao mirante, contemplando o Vale do Quilombo. Ali ele lembrou casos e afirmou que a Mata Atlântica parecia se encontrar com o céu!”

Para vislumbrar uma visão mais ampla era preciso subir em um muro de pedra. E para fazer isto, seu João necessitava de apoio, então foi proposto ampará-lo, garantindo o impulso: “Primeiro ele rechaçou a ideia, mas depois, em meio a sorrisos que jamais esquecerei, aceitou o apoio tanto na subida quanto na descida. Mal sabia eu que, quando ocorreu a descida do muro, estava amparando um protagonista na história de Canela, professor autodidata e mentor. Brincando cheguei a acomodá-lo em meu colo! Protagonizamos – ao lado de familiares – boas gargalhadas, mas cá entre nós: na verdade, embora tivesse lhe transportado no colo por alguns segundos, quem embalou (e embala) meus sonhos e inspirações é seu João Maria”.

Hoje lhe dizemos “até logo” e, embora conscientes de sua partida, sabemos que o senhor segue vivo, pois deixou gravado na memória de todos aqueles que o conheceram, exemplos de integridade, caráter, bondade e fé. Gratidão, seu João!”