Canela,

16 de abril de 2024

Anuncie

Serra do Umbu: quando a viagem para a praia era pela estrada de chão

Compartilhe:

Foto: Reprodução - Serra do Umbu, a 900m acima do nível do mar. Ao fundo, o Oceano Atlântico, na altura de Atlântida Sul

• Por Francisco Rocha • francisco@folhadecanela.com.br •

Vai pegar a estrada para a praia? Que legal! Certamente você vai usar a Rota do Sol e, dependendo de onde você veraneia, é provável que não rode nem um metro em estrada de chão batido.

Aqui, da Região das Hortênsias, até Arroio Teixeira, por exemplo, são cerca de 140km, algo em torno de duas horas de viagem, com condições de trânsito normal.

Mas, nem sempre foi assim. A Folha de Canela lhe convida para uma viagem no tempo, com relatos de quem viajou pela Serra do Umbu.

• • • • • • • • • •

Mas, que caminho é esse? Até 2006, a principal ligação entre a Região das Hortênsias e o Litoral Norte era pela RS-484. Para quem não sabe do que se trata, é uma estrada entre São Francisco de Paula e Maquiné, via Serra do Umbu.

São 57 quilômetros entre a RS-020, na localidade de Rincão dos Kroeff, em São Francisco de Paula, e a BR-101, em Maquiné, dos quais, apenas o finalzinho, do centro de Maquiné até a BR-101, cerca de quatro quilômetros, são asfaltados.

Em março de 1985, Ernesto Comelatte e Victor Lucena. A família veraneava em Arroio do Sol e tinha frequentes passagens pela Serra do Umbú

O trecho mais complicado são os nove quilômetros de descida da Serra do Umbu, realmente desafiadores, com costeletas, buracos, pedras e curvas acentuadas. Rincão dos Kroeff fica a 900 metros acima do nível do mar e o final da serra, em Barra do Ouro, fica encravado em meio aos cânions da Serra Geral, a 70 metros acima do nível do mar.

Ali também acontece o encontro com a RS-239, entre Maquiné e Riozinho.

Quem não se aventurava pela Serra do Umbu teria de optar por uma viagem via Taquara, pelo Passo das Moças, até Glorinha, também com estrada de chão.

Fotos: Arquivo Pessoal/Victor Lucena – A esquerda, Angélica Comelatte Lucena, a direita, Tadeu Lucena, em viagem realizada em julho de 1979

Era para ser a Rota do Sol

Segundo Márcio Paffrath Buffão, escritor e morador do Rincão dos Kroeff, na década de 1960, um grande movimento teve início na região serrana: a abertura da estrada das hortênsias, com o objetivo de construir uma ligação com o litoral norte do RS. Prefeitos de vários municípios da serra em conjunto com o Governo do Estado iniciaram a obra que levaria menos de dez anos para ser concluída.

Pela serra, sempre existiram caminhos que nos ligavam ao litoral, mas estes só podiam ser percorridos com o auxílio de animais de carga. Os tropeiros e mascates foram os que mais utilizaram esta rota para comerciar com os povoados de Barra do Ouro e Maquiné. O caminho da Serra do Umbu era utilizado pelas famílias mais ricas da região para veranear no litoral e faziam todo o trajeto a cavalo, isto em meados de 1920 até 1960.

Foto: Reprodução/Filhos do Rincão – Em 1930, um trilho para passagem de cavalos e tropas, no alto da Serra do Umbu

Em 1974 foi inaugurada a estrada das hortênsias, com a abertura da Serra do Umbu, e a empresa de ônibus Martini fez a viagem inaugural da linha Osório – São Chico em 01 de agosto deste ano.
O caminho mais fácil e mais rápido para todos os veranistas sempre foi pelo Rincão dos Kroeff e pela Serra do Umbu, isto até meados de 2004 quando o asfalto foi parar na Rota do Sol.

Há quem diga que faltou empenho e força política para a Região das Hortênsias, que acabou perdendo a queda de braço para a região da Uva e Vinho, vendo a principal ligação com o litoral ir parar na atual RS 453, a Rota Sol, descendo a Serra do Pinto.

Linda e desafiadora

A Serra do Umbu ainda permeia a memória de quem a utilizou nas viagens ao litoral. São mirantes que desnudam as montanhas da Serra Geral. Em um dos pontos é possível enxergar o Oceano Atlântico, na altura de Atlântida Sul.

Em outro ponto, a cascata da Boa Vista, que despenca em meio a um paredão de pedras. Ao pé da serra, os rios do Ouro, Forqueta e Maquiné, tornam ainda mais encantadora a viagem, com diversas pinguelas no trecho onde a estrada acompanha o rio.

Apesar de abandonada pelo Estado, ainda hoje, há quem se aventure pela estrada, seja para escapar dos congestionamentos ou mesmo buscar uma viagem diferente, em meio à natureza.

 

• • • • • • • • • •

Cheroso: uma vida descendo a Serra do Umbu

Se você, alguma vez na vida, já foi para a praia de ônibus, deve conhecer Darci José Deon, o Cheroso, hoje com 61 anos, ainda na ativa e fazendo a linha Canela – Litoral. Eu mesmo viajei mais de 15 anos para o litoral com o Cheroso na boleia!

Foto: Francisco Rocha – Darci, o Cheroso, em entrevista na redação da Folha

Darci começou a trabalhar com 21 anos na antiga empresa Floresta. Aos 23, foi surpreendido com uma missão: fazer a vigem para a praia.

Foi em 1980. Sua primeira vez na Serra do Umbu foi uma viagem de experiência, para avaliar a possibilidade da empresa efetivar a linha durante o verão.

Foto: Arquivo/Francisco Rocha – Em janeiro de 1981, Maria Luísa Martins da Rocha e Nauro Corrêa da Silva, em Arroio do Sal, com o ônibus da empresa Floresta

Eu era muito novo, não tinha experiência, achava que era muito novo para fazer uma viagem que exigia tanta perícia e responsabilidade, mas a empresa confiou em mim e foram 35 anos fazendo aquela linha”, diz Cheroso.

A primeira viagem aconteceu em 1980. Em 1984, a empresa Floresta foi vendida para a Citral, mas as viagens pela RS-484 continuaram, até 2006. No ano seguinte, 2007, já com a Rota do Sol inaugurada, os ônibus passaram a viajar pela Serra do Pinto, pelo asfalto, o que possibilitou que a empresa destinasse carros mais novos e modernos para o trajeto.

Assim como a estrada, as viagens mantinham características de interior. As pessoas levavam de tudo nos bagageiros, ranchos para passar até dois meses na praia. “Com o passar do tempo, eu tinha confiança de fazer a viagem e as pessoas confiavam em mim, pediam que filhos e netos pequenos viajassem sozinhos porque eu era o motorista”, afirma Darci. “Já aconteceu de passageiros comprarem a passagem apenas depois de verificar se era eu o motorista”.

Mas Cheroso não foi reconhecido apenas pela sua simpatia. Viajar pela Serra do Umbu exigia perícia, tanto para o motorista de ônibus, quanto para quem ia de carro. Pneus furados, carros que ferviam, estrada lisa, carros que saiam da pista, eram acontecimentos frequentes na estrada.

Passei muito medo em algumas viagens, teve uma noite de Natal que desci a serra e o Rio estava cheio, não dava para cruzar, subi pela mesma estrada e fui por Santo Antônio da Patrulha. Chegamos em Arroio do Sal por volta das 17h30min”, conta o motorista.

As viagens tinham horário de saída, às 6h30min, mas nunca de chegada. Em um dia bom, alcançava o fim da linha, em Arroio do Sal, por volta das 11h30min. Em dias ruins, podia ultrapassar as seis horas de viagem.

No começo, a parada para o café era em Morro Alto – Capão da Canoa, depois, era bem no meio da serra, em um café que depois encerrou as atividades. “Chequei a ser rebocado por trator, tive todo o tipo de problemas nestas viagens, mas tenho muita saudade daqueles tempos, fiz muitas amizades que duram até hoje”, diz Darci. “Hoje os tempos são diferentes, mas continuo fazendo litoral“.

A última pergunta foi respondida sem titubear e com muita firmeza. Perguntei a Cheroso, se fosse necessário, faria este trajeto novamente: “sem problema nenhum, lembro de cada trecho e cada lugar que devo colocar uma marcha. Seria interessante”!