Canela,

29 de março de 2024

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CRIME AMBIENTAL: conheça a maior poluidora do município de Canela

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Fotos: Filipe Rocha - Esta é a aparência do lançamento do esgoto, que deveria ser tratado, diretamente no Arroio Santa Terezinha, em 2017, um quadro desolador

Empresa que arrecada milhões por ano, larga esgoto praticamente puro nos arroios da cidade

Na semana em que o País lamenta mais uma tragédia ambiental, que deixou centenas de mortes e uma grande área devastada, com o rompimento da barragem do Feijão, em Brumadinho/MG, a reportagem da Folha decidiu revisitar uma de suas principais matérias realizadas ao longo dos sete anos de jornalismo comunitário: a qualidade das águas em Canela.
Em junho de 2015, a Folha mostrou que praticamente todos os arroios que passam pela zona urbana estavam extremamente poluídos, apresentando índices de poluição maiores do que Classe 4, pior classificação de águas da tabela do Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente. A situação se agravava nos pontos em que as Estações de Tratamento de Esgoto – ETEs, lançavam seus efluentes nos arroios.
A partir de dados da Prefeitura de Canela e do Ministério Público de Canela, nossa reportagem constatou que, na cidade, também temos nossa pequena tragédia, silenciosa, um grande crime ambiental, no qual os arroios e córregos da cidade recebem, 24 horas por dia, grande quantidade de esgoto acima dos limites estabelecidos nas normas vigentes, causando poluição, nos termos da letra “e” do inciso II, do art. 3° da Lei Federal 6938/1981.
E o pior, a empresa que comete este crime é justamente quem recebe para tratar este esgoto: a Companhia Riograndense de Saneamento, a Corsan. Tal condição, agravada pelo quadro de poluição continuada gera importante condição de risco, uma vez que as águas contaminadas viabilizam a dispersão de doenças, além de causar danos a fauna aquática e à população.

Uma questão ambiental e de saúde pública
Para Jackon Muller, biólogo, bioquímico e doutor em ecologia, que trabalhou nos municípios de Canela e Gramado, na área do saneamento básico, “apesar de possuir bons técnicos e servidores em seus quadros, no posto de vista da gestão, a ação da Corsan é criminosa, os sistemas são um caos”. Muller fala que no Estado, apenas 25% do esgoto é tratado. Apesar de em Canela o número ser um pouco maior, chegando a 30%, o impacto negativo na saúde pública é muito grande.
Temos conhecimento de lugares nas zonas rurais de Canela e Gramado que as pessoas já estão bebendo água contaminada”, afirma Jackson.
O serviço de abastecimento de água e de tratamento de esgoto é de responsabilidade da Prefeitura, serviço este que pode ser terceirizado. No caso de Canela, o contrato atual iniciou em 2004, quando a Corsan, além do abastecimento de água, assumiu o esgoto cloacal.
Em contrato, a Corsan é obrigada a realizar a operação, manutenção e expansão da rede, de acordo com o crescimento da cidade, bem como arcar com todas as obrigações legais.
É um negócio milionário”, explica Muller. “A Corsan diz que tem prejuízo, mas na verdade sobram muitos recursos que acabam sendo levados para outras cidades. É inadmissível uma cidade como Canela, com uma natureza exuberante, ver seu patrimônio natural ser destruído desta forma”.

As estações de tratamento
Canela possui cinco estações de tratamento de esgoto, quatro licenciadas pela Corsan junto à FEPAM. A mais nova e moderna fica próximo ao Condomínio Reserva da Serra, que construiu a ETE, outra no São Luiz, uma no Aracy Corrêa, próxima ao Parque do Sesi, e duas no Chacrão e a maior e mais antiga da cidade, a ETE Santa Terezinha, no bairro Celulose.
Pode parecer muito, mas estas estações não atendem 30% da demanda de Canela e, como mostrado na matéria de 2015, não tratam o esgoto que recolhem.

No mínimo classe 2
Existe uma tabela nacional da classificação das águas, que vai desde a Classe Especial, que pode ser usada para o consumo humano, até a classe 4, que pode ser usada apenas para a navegação e composição paisagística.
As ETEs de Canela deveriam devolver a água à natureza, no mínimo, na Classe 2, que permitiria a irrigação de hortaliças, plantas frutíferas e de parques, jardins, campos de esporte e lazer, com os quais o público possa vir a ter contato direto.
Mas, nem de longe isso acontece. Em 2015, em todos os casos, as águas eram devolvidas à natureza com 500% a mais de poluição que a pior classificação, a Classe 4.
Mas, porque isso ocorre? Quem é o responsável? Será que a situação mudou nestes três anos?
A reportagem da Folha mergulhou neste crime ambiental, recolheu laudos e visitou todas as estações de tratamento de esgoto, na última segunda (29) e o que se percebeu pode realmente ser definido pela expressão “caos”.

ETE Reserva da Serra
Esta estação foi construída pelo condomínio de mesmo nome, sendo a mais nova da cidade e a mais moderna. Apesar disso tudo, a Corsan não consegue dar uma resposta adequada no tratamento do esgoto que ali chega, exclusivo do condomínio, sendo seus efluentes lançados à natureza que logo abaixo vão encontrar o Arroio Trombão, que desce pelo Vale do Quilombo.
Em local de difícil acesso, ao menos está cercada e fechada, impedindo que alguém chegue até a estação.
Segundo laudo técnico recente da Prefeitura, esta ETE não cumpre a legislação, pois pelo menos quatro parâmetros, como coliformes fecais e fósforo estão acima do permitido. Além disso, a estação despeja 10% mais efluentes na natureza, por dia, do que sua licença permite.

ETE Aracy Corrêa
Construída pela Prefeitura por volta de 2003, esta ETE tem um problema recorrente, a cerca está aberta dando acesso fácil pela Rua Francisco Bertoluci. O portão fechado e com mato mostra que não houve visita no local há algumas semanas.
Exalando forte odor de esgoto, conta ao menos com um filtro aeróbico, mas níveis acima dos limites, além de fósforo, nitrogênio amoniacal, sólidos totais e surfactantes (detergentes). Em uma análise de 2017, chegou a ser constatado que os coliformes fecais excederam em 3.400% o tolerável. Aqui, também são jogados mais efluentes por dia na natureza do que a licença ambiental permite.

A cerca não impede nem uma criança de entrar na estação

ETE Chacrao I
Localizada na Rua Tancredo Neves, a ETE Chacrão I foi construída próxima a um afluente do Arroio da Casca. Já na entrada da Estação, a reportagem da Folha flagrou esgoto correndo em céu aberto, descendo em direção ao curso d’água, mostrando que o esgoto já está vazando antes mesmo de entrar na Estação. Aqui, a cerca partida não impede o acesso à ETE.
Não foi possível ter acesso a laudo técnico da qualidade do efluente desta estação.

Caixa de saída, sem tratamento, o esgoto é largado direto na natureza

ETE Chacrão II
Ao Ministério Público, a Corsan chegou a afirmar que esta ETE não é de sua responsabilidade, porém, ela mesmo desconhece seus deveres. No contrato com o município, a Corsan assumiu a totalidade dos equipamentos e sistema de tratamento de esgoto, além de ter a exclusividade deste serviço. Sendo assim, essa estação, ainda que pequena, é sim de sua responsabilidade.
Aqui, o quadro se agrava. É possível ver o esgoto recolhido caindo direto em uma caixa de passagem, sem entrar nas caixas de tratamento, e dali sendo dispensada direto na natureza, indo encontrar o afluente do Arroio da Casca, metros abaixo. Ou seja, esgoto direto no arroio.
Sem nenhum cercamento, com as tampas das caixas e filtros abertas ou estragadas, a Chacrao II é um convite para acidente. Descaso total.

Descaso total, Chacrão II não tem cercamento, placas nem licença ambiental

ETE São Luiz
Uma das maiores situações de poluição de Canela, a ETE São Luiz é construída ao lado do arroio de mesmo nome, afluente do Arroio Canelinha, que vai formar o Arroio Caracol.
Na análise de 2017, os coliformes fecais desta estação estavam 15.900% acima do nível permitido. Aqui foram constatadas substâncias de uso industrial, como o fenol, poluente tóxico e cancerígeno, sendo jogado na natureza.
Como nas demais estações, o portal estava amarrado com um arame, dando livre acesso a qualquer pessoa.

Portão amarrado com arame, cena comum nas estações de tratamento de esgoto de Canela

ETE Santa Terezinha
Chegamos à cereja do bolo, a maior e mais antiga estação de tratamento de esgoto da cidade. Localizada no bairro Celulose, a poucos metros do Arroio Santa Terezinha, um dos que vão formar o Arroio Caracol, juntamente com o Pulador e Canelinha, esta ETE mostra o total descaso com o meio ambiente.
A quantidade de efluente lançada no arroio é muito grande, sua aparência é cinza, gerando muita espuma, e o odor mostra que praticamente nada foi tratado.
Aqui, os níveis de poluição são colossais e foram encontradas substâncias extremamente tóxicas, como amônia, fósforo, detergentes, graxas, sem falar nos coliformes fecais, mais de 2.400% acima dos níveis permitidos.

A árvore, sobre a escada de acesso à estação de tratamento mostra que a reportagem da Folha foi a única presença humana no local, há semanas

Município pode retomar os serviços sem prejuízos
É uma decisão difícil, mas o Município poderia encerrar neste momento o contrato com a Corsan e prestar ele mesmo o serviço de abastecimento de água e cuidar do esgoto sanitário.
Isso seria uma revolução na administração pública, na qual Canela seria o grande exemplo para outras cidades”, afirma o biólogo Jackson Muller.
Isso porque estes serviços são cedidos pela Prefeitura para a Corsan, que arrecada e não investe em Canela. Esse dinheiro vai para o caixa da companhia e acaba diluído nas despesas de outras cidades.
Retomando os serviços, a Prefeitura passaria a gerir os recursos das contas de água e de esgoto, acrescentando valores significativos ao caixa anual. Muller destaca que, somente em Canela, foram cerca de 23 milhões arrecadados pela Corsan em 2018. “É uma fábrica de dinheiro”, sentencia.
Outro ponto nebuloso no contrato entre a Prefeitura e a Corsan, é a prestação de contas dos recursos financeiros.
Em 2016, segundo dados da própria Corsan, informados ao SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, foram arrecadados mais de R$ 19 milhões em Canela, em contas de água e esgoto.
Deste valor, chama a atenção os R$ 7,3 milhões usados no ano para custear 25 servidores e mais R$ 14 milhões com despesas da exploração da água, ou seja, captar a água no Poço da Faca em São Francisco de Paula e bombear para as estações de tratamento em Canela.
Curioso, dos R$ 19 milhões arrecadados, menos de R$ 300 mil foram investidos no abastecimento de água e R$ 550 mil no esgoto sanitário.
Além disso, Canela poderia captar a água, tratar e vender para cidades vizinhas, como Gramado, por exemplo. Mas a Corsan diz que este serviço dá prejuízo”, finaliza Muller.

O que diz a legislação
O meio ambiente é um bem fundamental à existência humana e, como tal, deve ser assegurado e protegido para uso de todos. Este é princípio expresso no texto da Constituição Federal, que no seu art. 225, caput, dispõe sobre o reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio como uma extensão ao direito à vida.
Crime é uma violação ao direito. Assim, será um crime ambiental todo e qualquer dano ou prejuízo causado aos elementos que compõem o ambiente: flora, fauna, recursos naturais e o patrimônio cultural.
Por violar direito protegido, todo crime é passível de sanção (penalização), que é regulado por lei. O ambiente é protegido pela Lei n.º 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), que determina as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
Já a Lei n.º 6.938/1981, diz que poluição é a degradação do meio ambiente, direta ou indireta e que a simples alteração estética do ambiente natural já se torna crime ambiental.
Atualmente, a Corsan responde na Justiça por duas Ações Civil Públicas, de autoria do Ministério Público. A na esfera Civil proíbe de cobrar a taxa de esgoto, uma vez que não trata o esgoto recolhido, a segunda, na área criminal, como poluidora.